6 de jun. de 2011

Um conservador de suas matrizes

O cantor, compositor e intérprete Roberto Mendes é um dos poucos divulgadores da Chula
Por Luiza Cazumbá



Baiano de Santo Amaro da Purificação, Roberto Mendes já participou de Festivais de Música da década de 80, tem muitas de suas músicas gravadas por Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros cantores. Em suas músicas, Mendes procura resgatar a tradição e é hoje preservador da Chula – estilo híbrido de influências europeia e africana.
Lançou em março o livro e DVD Sotaque em Pauta - chula: o canto do Recôncavo. Depois de trinta anos de pesquisa sobre a Chula do Recôncavo, ele apresenta a obra, que tem tiragem de dois mil exemplares e é bilíngue (português - inglês). Na entrevista a seguir, feita por e-mail, ele fala sobre a música na sua vida, a participação em festivais de música, a Chula, o livro e DVD, suas inspirações, o gosto pela música e novos projetos. Confira.


Quando a música começou a fazer parte de sua vida?

Desde que nasci. Nasci em um lugar onde a fé é regida pela canção. Seja a canção profana, seja a sacra. Todos os ritos de Santo Amaro, do Recôncavo são regidos pela canção. Todos os ritos são louvados na canção.



Você deixou de lecionar Matemática por que sua vocação não era a educação ou por que a música começou a dar certo?

Porque me senti mais útil na música, educando através da música. E é exatamente isso que faço até hoje. Não abandonei a educação, continuo educando até hoje. Continuo professor, nunca deixei de sê-lo. Toda a minha pedagogia, toda a minha didática utilizo-as na canção.



Como foi participar de festivais de música da década de 1980?

Era muito bom. Os festivais eram o único canal que tínhamos para expor a nossa arte. Ainda não existia com tanta crueldade, com tanta severidade, a ditadura do gosto.



Por que o interesse pela Chula?

É o mesmo interesse que tenho pela minha memória, pela gente da minha terra, pelas minhas matrizes. A chula é a louvação de tudo isso.



O que é a Chula?

É um comportamento que foi traduzido em canção. Um canto de labor como a bata do milho, a bata do feijão. Um canto que rege o trabalho.



Você dedicou-se a escrever um livro sobre a chula pelo desejo de eternizá-la?

Não. O objetivo é chamar a atenção para o que é feito no Brasil. O objetivo é que outras encruzilhadas étnicas não se envergonhem de se mostrar. O objetivo é a preservação do sotaque do meu canto. Ou seja, é preservar e realçar o canto da minha nação, da minha tribo. É a proposta que sempre defendo que é a de arrumar a casa pra quem mora nela, não para receber visitas. Não significa que eu esteja fechado para outras modalidades de música que se fazem mundo.




Quais foram os parceiros neste projeto?

O livro foi feito em regime de parceria. Os autores sou eu e o Nizaldo Costa, este autor da letra de várias canções que constam no livro e autor do texto. As partituras foram feitas por Marcos Bezerra e as fotografias que ilustram e enriquecem o livro são de Marcelo Bruzzi.



Em outras entrevistas, você cita como inspiração Guimarães Rosa e Mario de Andrade. Por que essa identificação?

Porque o canto do Guimarães Rosa é exatamente a minha canção. Eu e Guimarães Rosa falamos a mesma língua, a língua do provinciano. Talvez seja isso que nos uma: eu canto o canto do provinciano e ele escreve na língua do capiau, do provinciano.



Como está composto o livro “Sotaque em Pauta – Chula: o canto do Recôncavo”?

O livro inicia-se com um texto do Nizaldo Costa em que ele aborda a trajetória da língua portuguesa, passando pelo tupinambá, africano até chegar à língua portuguesa imposta pelo colonizador. Traz também um estudo sobre versificação, em que se realça a influência das redondilhas camonianas na letra das chulas. Do livro constam ainda todas as letras das músicas que farão parte do meu próximo CD. Têm as fotografias de Marcelo Bruzzi, as partituras feitas por Marcos Bezerra. Tem ainda um DVD com show voz e violão e uma belíssima aula onde Marcos Bezerra passa de forma bem didática a minha técnica de tocar violão.



Por que distribuir gratuitamente o livro e DVD?

O trabalho teve o apoio e o patrocínio do Ministério da Cultura.



A Chula é única do Recôncavo Baiano e do norte de Portugal. Por que lançar primeiro o livro e DVD na região sudeste?

A nossa chula é aldeã portuguesa, com heranças fortíssimas do norte de Portugal. Mas, é no Recôncavo Baiano que a chula recebe um tempero especial. Amalgama-se ao tambor de Angola, dos bantus; ao samba de caboclo, antigo batuque. Pra preparar, pra prestar contas quando viéssemos pra cá. A idéia de ir a tribos diferentes serve apenas e exclusivamente para prestar contas a quem realmente devo: a gente da minha terra, as minhas matrizes: João do Boi, Alumínio, Dona Dalva e tantas outras.


Você está realizado pela repercussão do livro?


A minha realização vem quando a minha matriz respalda o trabalho. Fico feliz, tranquilo e realizado quando João do Boi, Alumínio, Dona Dalva e tantas outras matrizes respaldam e aprovam o meu trabalho. E nesse caso aconteceu. Para mim, isso basta, é suficiente. A opinião dos críticos, dos leitores me interessa, lógico. Fico feliz quando essas pessoas aprovam o resultado final do meu trabalho.


Os baianos e em especial os santoamarenses se orgulham de ter a Chula como obra prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade?

Sim, apenas a título de divulgação. É um título que inegavelmente valoriza a nossa canção. Mas, corre-se um grande risco quando se põe em evidência o canto de uma terra. Faz-se necessário um estudo e avaliação criteriosos. Faz-se necessário que se proceda a um rigoroso inventário, principalmente das obras do chamado “domínio público”. Cabe ao Estado fazer um sério inventário de paternidade dessas obras, a fim de que se descubram a verdadeira autoria e consequentemente estes seriam alcançados pela lei dos direitos autorais. Mas, nem sempre o Estado lida bem com esse tipo de questão. Nesse caso, não houve uma pesquisa rigorosa. O trabalho ficou sob uma visão exclusivamente acadêmica, o que é um imperdoável equívoco. É necessário um investimento maior em pesquisa. Quem sabe daqui a cem anos isso aconteça. O Brasil é um país muito novo pra investir em tese. Principalmente quando se trata de comportamento. É necessário maior cuidado.



Você se considera um “Chuleiro”?

Com um sorriso, digo que não. Quem me dera fosse um chuleiro. É um privilégio de poucos. Vontade tenho, Ave Maria... Mas, quando se estuda, fica-se contaminado por uma série de influências e já não dá pra voltar a ser chuleiro. Ser chuleiro é uma glória. Sou apenas um copiador como qualquer outro que tenta traduzir um comportamento de uma nação, de um povo.



Você tem músicas suas gravadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e tantos outros, mas como é compor para Maria Bethânia?

Tenho Bethânia como porta-voz do meu canto. Pela maneira como trata o autor; pelo rigor; pelo nível de exigência; pelo respeito que ela tem pelo compositor, pelo autor; pela responsabilidade com que ela trata a canção, a poesia. Comecei minha carreira errada, comecei do topo, ao invés de começar pela base: já comecei com Bethânia, queimei etapas.



Bethânia é muito exigente?

Sim. Muito exigente. Tudo que ela faz, faz com a alma com o coração. Daí, não ter como não ser exigente.


Que outros estilos de música aprecia?

Todos. Eu gosto de música. Claro que a minha preferência é a Chula. A chula é diferente. Faço chula com muito rigor, porque tenho de prestar contas às matrizes. Com quem eu aprendi a gostar e a tocar.



O que acha do estilo de música que alguns jovens ouvem hoje?

É muito difícil definir estilo. Hoje não se tem clave. No mundo de hoje já não se tem estilo. Estilo é uma imposição da mídia. A mídia é quem impõe o gosto às pessoas. Os jovens ficam reféns dessa imposição da mídia. É a mídia que dita: é a ditadura do gosto.



Algum projeto novo em mente?

Divulgar a chula sempre. O xaréu é um tipo de chula praieira, um canto praieiro. Trata-se de uma adaptação da viola de seu Vicente de Paula na década de 1970, de Tavinho e Frade, dois irmãos que moravam um em Iguape e outro em Itapema, pertinho de Santo Amaro. Estou preparando um CD só de Xaréu.





Discografia: Flama (1988), Matriz (1992), Roberto Mendes & Baianos Luz (1994), Voz Guia (1996), Minha História (1999), Tradução (2000), Flor da Memória (2003) e Tempos Quase Modernos (2005).

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