Última noite

Antes e depois da chuva
Público reduzido não desanimou os organizadores 

Por Edson Costa

O primeiro Festival de Cinema Universitário de Sergipe, o Sercine, realizado de 28 de Abril a 1º de Maio, em Aracaju, encerrou suas atividades na noite deste domingo, após quatro dias de mostras competitivas e informativas, oficinas e mesas de debate, que fomentaram temáticas amplas entre pessoas interessadas. Mas, no decorrer desse período, a chuva que ininterruptamente acinzentou e esvaziou as ruas da cidade também dificultou a rotina do evento e o êxito de todo o empenho dos organizadores.

As atividades aconteceram em quatro lugares diferentes: o Núcleo de Produção Digital Orlando Vieira (NPD), a Sociedade Semear, o Serviço Social do Comercio de Sergipe (SESC - SE), e o Centro de Criatividade de Aracaju (CCA). Mas, esse último, foi o mais comentado, por bons e maus motivos. Muitos espectadores afirmaram ter encontrado dificuldade para localizar o CCA, e o próprio organizador do evento, Baruch Blumberg, lamentou seu desconhecimento por parte da população (ver quadro no final deste texto).

Alguns espectadores fizeram relatos de sensação de insegurança nas redondezas do Centro, e de intimidação por parte de pessoas da localidade. Na noite do encerramento, jovens da vizinhança brincavam na quadra situada em frente à entrada e, em pouco tempo, já brigavam com agressão física e fortíssimos insultos verbais, forçando os monitores do evento a intervir. Mas o lamento de Baruch pelo desconhecimento deve-se à boa estrutura física do local, que é subaproveitada, qualidade do espaço ressaltada também pelo mesmo público que se sentia inseguro. Com tom bem humorado, as pessoas comentavam sobre a ladeira íngreme e, na ocasião, molhada pela chuva, que tiveram que subir para chegar até o CCA. Em compensação, lá de cima tem-se uma belíssima vista de Aracaju.

Personagens em cena

Como foi comum durante todo o evento, o encerramento começou com atraso. Seria exibido o último documentário do escritor/cineasta argentino, mas residente em Salvador, Carlos Pronzato, e logo após, aconteceria a premiação. Curiosamente, nesse domingo, a chuva deu uma trégua, aparecendo apenas de forma esparsa, mas suficiente para deixar as ruas ainda vazias. Antes da exibição, Pronzato arrumou um pequeno estande com seus livros e cópias de seus filmes, trajando uma camisa floral e praiana em plena noite úmida e nublada. “Agora como feirante, daqui a pouco como conferencista”, brincou.

Nos fundos da sala onde aconteceriam os últimos momentos do Sercine, havia um grande anfiteatro ao ar livre, mal iluminado, mas, talvez por isso mesmo, fascinante. Durante o século XX, época em que o cinema lutava para ser considerado uma arte, e não apenas um entretenimento para suburbanos, pontuou-se a necessidade de olhar o teatro como inimigo, principalmente nos movimentos de vanguarda europeus. Mas, naquela noite, o teatro abraçava confortavelmente o cinema, e calava-se no quase escuro, em respeito à sétima arte.

A bela vista de Aracaju que se tem do CCA é ainda mais singular à noite, quando se pode ver milhares de pontos de luz. Difícil não lembrar o clássico de Charlie Chaplin, “Luzes da Cidade”, considerado pelos críticos como sua obra prima. Dentro do auditório, os espaços vazios vão se ocupando, até alcançar o incrível número de 52 pessoas! (Para a média de público do evento, foi uma marca a se comemorar). Sinalizando o início da exibição, a porta é parcialmente coberta por uma cortina, mas sendo ela de vidro, a parte descoberta revelava o vai e vem frenético das sombras dos organizadores cuidando dos últimos detalhes antes das luzes se apagarem. O último filme de Pronzato foi exibido, enquanto algumas poucas pessoas ainda chegavam.

Após a exibição, algumas palavras foram trocadas entre ele e a platéia, mas sempre pairava aquela sensação de que poderia ter “rendido” mais. O casal de apresentadores, trajando elegantes roupas formais, falava rebuscadamente diante de uma platéia reduzida e vestida muito à vontade. Ambos chegaram a comentar sobre a chuva, como sendo uma “festa no céu”... Mas as ruas vazias da cidade por todo o fim de semana não pareciam festivas.

Ao fim da fala de Pronzato, veio a premiação. Grazielle Ferreira, do NPD, recebeu um troféu de honra pela sua contribuição para o evento. “Circuito Interno”, de Júlio Marti, foi escolhido o melhor pelo júri, mas seu diretor não pode comparecer para receber o prêmio pessoalmente. “Retratos”, de Leo Tabosa e Rafael Negrão, foi o preferido pelo voto popular; apenas Tabosa estava lá, e o assédio que sofreu após o encerramento do Sercine revela a aceitação do seu filme.

Tudo o que não foi

Quando os últimos aplausos cessaram e o público saiu da sala, os organizadores, comedidamente, expressaram um profundo alívio e sensação de dever cumprido. Para clicar as últimas fotos, todos imitaram a pose sempre feita por Pronzato, cruzando os braços. Quando interrogados, tanto organizadores quanto espectadores do Sercine deixavam transparecer uma notinha de frustração pelos detalhes que não deram certo. Além do público reduzido, alguns filmes escalados para as mostras informativas foram perdidos, e, mais de uma vez, o roteiro do evento precisou ser reescrito. A persistente chuva e a distância entre os locais do evento foram outros alvos de reclamações.

Ma a unanimidade de queixas por parte dos organizadores foi em relação à ausência em massa dos alunos do curso de Audiovisual da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Repetitivamente, Baruch afirmou a meta do evento: dar espaço para o cinema universitário. Segundo ele, por não precisar seguir demandas de mercado, o cinema feito na academia é mais livre para abordar diferentes temáticas e tentar as mais diversas experimentações. Era esperável que o curso de Audiovisual da UFS, que ainda luta para construir o seu espaço no estado, visse esse evento como mais uma oportunidade de consolidação.

Os alunos da UFS não estariam interessados em experimentar? Bem, os poucos que se encontravam no evento, sim. Estes participaram das oficinas de criação realizadas e pareceram indignados pelo, sob sua perspectiva, invisível apoio do Departamento de Comunicação Social (DCOS). Mas, devolvendo a responsabilidade à produção, disseram que o Festival foi mal divulgado. Se “Luzes da Cidade” não comoveu os organizadores do Oscar e seu diretor jamais ganhou a estatueta por nenhum de seus filmes, pode-se dizer que nem todo esforço de criação é sempre reconhecido.

Tudo o que ainda será

“O mais importante é que o evento aconteceu”, disse Baruch, ao fim do Sercine. E todos pareceram concordar plenamente. Pronzato afirmou a importância do evento, dizendo que gostou muito dos curtas apresentados, e que foi um passo decisivo para a consolidação do audiovisual em Sergipe. Para ele, o Sercine poderá, dentro em breve, ter a mesma importância que o Curta-se tem hoje.

Bruno Gehring e Felipe Augusto, da Kinoarte, que realizaram as oficinas de produção gratuitamente, se sentiram gratificados. Gehring disse que se sentia como um padrinho do evento, e Felipe, que sua paixão pelo cinema e a crença de que algo maior e melhor possa surgir o fizeram levar a oficina adiante. Mas, muito além de pura paixão, os dois tiveram sua qualidade técnica e seu bom gosto reconhecidos por parte dos poucos alunos que realizaram as oficinas. “Deixei o material na mão deles mais do que eu pensei que faria”, admitiu o designer, aparentemente surpreso.

Gehring conclui dizendo: “mesmo que hoje seja incipiente, Sergipe tem cinema (...). Esse Sercine foi como uma semente plantada.” Aliás, essa analogia da semente também foi mencionada por Felipe, por Baruch, e por quase todo o público abordado. O “empenho” citado no início desta reportagem foi movido a puro idealismo e crença em dias melhores. Mesmo que a analogia pareça suficientemente desgastada, o tom sincero de todos foi mais do que convincente e contagiante.

Insistindo na lembrança de Chaplin, nos damos conta de que o descaso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em relação a “Luzes da Cidade” não afastou o apaixonado público de sua exibição. Durante a trama, o vagabundo é preso e se afasta de sua amada. Mas, ao final, eles se reencontram e ela, agora podendo enxergar, o reconhece pelo toque das mãos. Este pode não parecer bem um final, mas a beleza dessa singela história está justamente em não acabar. No fim das contas, o Sercine também não acabou, pois a mesma paixão idealista de quem fez o primeiro persistirá. Em vez de “The End”, mais adequado seria dizer “to be continued”.


 Não era o que parecia

A escolha do Centro de Criatividade de Aracaju (CCA) como um dos locais de realização do Sercine, que sediou não só as mostras de cinema, mas boa parte da programação, gerou inúmeras críticas acerca das condições de segurança. O “Centro”, como é conhecido popularmente, fica na Praça Saturnino Brito, no Bairro Getúlio Vargas, e há mais de 25 anos ostenta a tradição de recepcionar e promover as mais diversas manifestações culturais do povo sergipano, a exemplo do tradicional Concurso de Quadrilhas Juninas João da Cruz. Além disso, lá acontecem oficinas artísticas oferecidas à comunidade local, que em sua predominância é composta por descendentes diretos de escravos, pois ao lado há uma comunidade remanescente quilombola, a “Maloca”, que foi reconhecida há 4 anos como o único quilombo existente em uma área urbana do Estado, segundo a Fundação Cultural Palmares do Brasil (FCPB).

O Sercine foi realizado na área interna do centro cultural, em um ambiente que funciona tanto como teatro, quanto sala de cinema, com capacidade para acomodar mais de 130 pessoas. A preocupação dos participantes foi provocada por um incidente logo na noite de abertura do Festival, quando alguns grupos de jovens ociosos circundaram as dependências do local com “atitudes suspeitas”. As condições demasiadamente precárias da iluminação também deixaram muitos espectadores apreensivos. No entanto, quase ninguém notou a presença de dois policiais que fazia ronda no local (por Eduardo Ferreira Santos).