5 de out. de 2016

A utopia do direito à cidade


Por Lourdes Morante e Eric Almeida.

O conceito do Direito à Cidade foi desenvolvido pelo sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre em seu livro de 1968 Le droit à laville. Ele define como um direito de não exclusão da sociedade das qualidades e benefícios da vida urbana. Embora esse direito esteja garantido, no Brasil, por lei desde 2001 por meio do Estatuto da Cidade é comum identificar o descumprimento nas principais cidades do país, incluindo Aracaju. 

Segundo estudos em Planejamento Territorial do sociólogo Manuel Castells, o processo de urbanização no Brasil foi rápido e desorganizado, o que culminou na migração do meio rural para as grandes cidades, alterando a sistematização socioespacial do país. O crescimento desordenado do meio urbano provocou também diversos problemas estruturais; a formação de favelas, nas quais a população de baixa renda se fixa em razão da baixa valorização dos terrenos; e a construção de habitações em espaços periféricos que em sua maioria se encontram em áreas de risco ambiental e distantes do centro da cidade, o que dificultam garantir direitos básicos aos moradores. 

No caso específico de Aracaju, Vinicius Oliveira, mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), explica que o problema do processo de urbanização  e a efetivação da garantia do direito à cidade torna-se ainda mais difícil  de resolver, uma vez que, o planejamento urbano atual não é alicerçado para atender as necessidades coletivas, mas principalmente para satisfazer só um grupo privilegiado de pessoas ou algumas empresas que acentuam e perpetuam problemas urbanos de modo a tornar o direito à cidade cada vez mais utópico. 

Direito à moradia é existir na cidade

A casinha é um espaço de intervenção cultural horizontal e auto-gestinário. 
Foto: Eric Almeida

O direito à moradia integra o direito a um lar e deve incluir: segurança da posse, disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos, custo acessível, habitabilidade, localização adequada e adequação cultural, características que diagnosticamos facilmente não existir em bairros periféricos de Aracaju. Diante do cenário de descaso com o direito a moradia, o número de ocupações urbanas cresceu na cidade, explica Vinicius ao citar a realidade da capital sergipana

Ocupação urbana

A 10 minutos dos muros do principal campus da UFS está localizada A Casinha - Ocupação, Resistência e Residência, uma ocupação urbana localizada no Bairro Rosa Elze, em São Cristóvão, região metropolitana de Aracaju. No espaço onde funcionava uma antiga unidade de saúde que estava abandonada há três anos vivem Juliana Aguiar, artesã, professora de História e educadora popular; Dênis, artesão, e John Eldon, estudante de Artes da UFS. Juliana legitima a ocupação explicando que o simples fato de naturalizarmos o não ter onde morar (devido aos preços abusivos dos aluguéis e o não cumprimento do direito à moradia para todos) já justifica ocupar locais que não cumpram sua função social.

Na Casinha não há água encanada, não há energia elétrica, os móveis são reutilizados e os alimentos consumidos são reaproveitados do excesso que é jogado no lixo de feiras e supermercados. Embora o que para muitos pode não parecer um bom lugar para se morar, Juliana faz questão de explicar que o "não-conforto" (sair da rotina individualista e consumista para uma rotina coletiva e libertadora) é o modo de vida que deve regrar a ocupação para se obter sucesso no processo de existir na cidade e emancipar-se dos padrões de vida que são impostos. 

Apesar de estarem habitando a casa, o intuito dos morados é tornar A Casinha um espaço de intervenção cultural, horizontal e auto-gestionário.  A partir de eventos culturais como o Laricasso, leitura de livros às crianças, grafitagem e posteriormente oficinas de costura A Casinha se integra a comunidade local. Para Juliana, o principal foco da ocupação é existir dentro da sociedade junto com a comunidade em que estamos inseridos. Juliana explica que é importante não limitar as intervenções somente à Universidade, assim ampliando o rumo do processo de ocupação dos espaços urbanos. ''A gente precisa existir junto a comunidade, para existir na cidade'', diz Juliana. 

Ocupar espaços como forma de garantir direitos.

Ocupar espaços permite que o direito à cidade se torne presente e visível a sociedade civil. Faz com que o cidadão se torne protagonista da cidade e possa vivê-la. Vinicius Oliveira argumenta sobre a importância de fazer uma cidade voltada às pessoas, como forma de garantir direitos básicos, como segurança pública e lazer. 

“A gente relaciona a sensação de insegurança à falta de segurança pública por parte do estado, logo, queremos mais polícia nas ruas. Na verdade os espaços não são colocados para as pessoas de forma que elas transitem de forma segura. Quando você constrói um bairro que é basicamente todo emparedado, você acaba permitindo que dentro dos condomínios fechados se ganhe uma segurança, mas fora dele se perca a segurança da cidade, falta de iluminação pública, falta de parada de ônibus, pouca circulação de pessoas a pé, calçadas mal feitas, verticalização das moradias, o que dificulta qualquer relação social de encontro. Ou seja, uma cidade que não pode ser ocupada, se torna uma cidade insegura”.

Para Vinicius, uma cidade que democratize os acessos é uma cidade que respeita o direito a ocupar espaços ao ponto de torná-los mais seguros.  Para isso é necessário criar um ideal em a cidade não seja apenas ocupada  em horário de trabalho, mas também outras instâncias. O direito ao lazer gratuito, promovido por projetos de intervenção cultural e ocupações urbanas como o Sarau de Baixo, Ensaio Aberto e A Casinha - Ocupação e Resistência -  são de fundamental importância, ajudam a ocupar a cidade com intenções que vão além de lógica de lucro -tornando a cidade mais humana e segura- e contribuem para construção de uma sociedade que não compra o direito à cidade. 

''Nessas manifestações alternativas percebe-se que há vontade se encontrar com sua ancestralidade, as pessoas querem se encontrar de forma coletiva, não apenas aglomerada, se divertir, ocupar aquele espaço para lazer. Esse tipo de interação cotidiana rápida -e que não contribuem pra nossa formação- que prevalece em Aracaju é o capitalismo cria. Tem um interesse e são os grandes empresários, são donos de construtora, são donos da empresa de transporte que lucraram muito quando a gente se relaciona a partir da perspectiva apenas de trabalho e que não contempla a todos '', pontua 
Vinicius. 

Por que o direito à cidade ainda é uma utopia?

No ultimo censo realizado em 2010, 33,9 milhões brasileiros não tinham onde morar segundo o relatório lançado pelo Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos.Em Aracaju, 2.015 casas estão vazias e 1.231 terrenos sem função social. No Brasil hoje existem pouco mais de 6,7 milhões de domicílios vagos, incluindo os que estão em construção. Quando o direito à cidade falha o direito à moradia, à saúde, ao lazer e à educação ficam ameaçados. Não se lida com o direito à cidade de forma individual, mas coletiva. Enquanto se esquecer disso o direito à cidade continuará sendo visto como uma utopia social e como reivindicações coletivas inspiradas em ideias e sugestões apenas de movimentos sociais. 

Para quem luta contra o rumo do planejamento de muitas cidades modernas, em que os processos e serviços públicos foram privatizados e onde o desenvolvimento é impulsionado principalmente por empresas e mercados, fica claro que é necessário se reafirmar como sujeitos de direitos e garantir desenvolvimento pleno da cidadania para que nenhum direito seja cortado e que a vivência dos territórios urbanos exista com liberdade.  

 Galeria de Fotos

    Foto: Eric Almeida
A biblioteca da ocupação A Casinha é comunitária dedicada aos moradores do bairro Rosa Elze e visitantes de quaisquer outras regiões da cidade

    Foto: Lourdes Morante
    Nanquim, que significa tinta preta, é o nome do cachorro que também vive na ocupação; para além                do significado literal o nome de Nanquim reafirma a presença de artistas no espaço.
                                                          
Sair da rotina individualista e consumista é um dos ideais dos moradores da Casinha.
Créditos: Lourdes Morante

Interversão artística em parte do muro da ocupação.
Créditos: Eric Almeida

Juliana Aguiar, moradora da ocupação: "Precisamos existir dentro de nossas próprias vidas."
Crédito: Eric Almeida

"Eu sou freelancer na vida", respondeu Seu Agnaldo quando idagado sobre o que 'fazia da vida'. "Ele sempre dá uma força aqui na ocupação", ressaltou Juliana, moradora. 
Crédito: Eric Almeida

A Casinha é aberta para reuniões de coletivos, eventos culturais ou visitas simplesmente. 
Crédito: Eric Almeida



                                                       
                                                              Foto: Eric Almeida
                                                      



Diferenças não justificam desigualdades de gênero

Por Luara Pereira e Rose Bonifácio

Uma afirmação recente do atual ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP), surpreendeu os defensores da igualdade de gênero: “Eu acredito que é uma questão de hábito. Os homens trabalham mais, são os provedores da maioria das famílias e não acham tempo para a saúde preventiva. Isso precisa ser modificado. Nós queremos capturá-los para fazer os exames e cuidar da saúde. A meta destes guias é fazer que nossos servidores orientem os homens, que normalmente estão fora [de casa], trabalhando”.

Entretanto, logo após esse pronunciamento, em que colocou as mulheres numa posição inferior ao se referir ao homem como o grande provedor da casa, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2014 vieram à tona, mostrando que as mulheres têm uma jornada semanal de quase cinco horas a mais que os homens, incluindo a jornada de trabalho doméstico. Ou seja, uma jornada dupla, na qual repartem seu tempo entre a casa e a família. Além de trabalharem mais, as mulheres em geral, e especificamente no Brasil, segundo os dados da pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID, recebem salários 30% menores que os homens.

O pronunciamento do ministro gerou grande indignação por parte das mulheres que, ao longo de vários anos, vêm lutando por direitos iguais que se concretizam muito lentamente. Situação que vai de encontro ao artigo quinto da Constituição Federal (CF), o qual diz: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". 

Entretanto, passados 28 anos da promulgação da CF, também conhecida como constituição cidadã, e mesmo com o crescimento do movimento feminista ao longo de décadas, as desigualdades e a opressão de gênero em relação às mulheres continuam alarmantes. Mas há algumas medidas compensatórias, como a criação das leis de igualdade formal como, por exemplo, a Lei Maria da Penha e a Lei Orgânica da Previdência Social, que cobram uma postura assistencialista por parte do Estado para com "minorias", ou seja, mulheres, idosos, crianças.

É por ainda se precisar de leis protecionistas que o feminismo, desde seu auge nos anos 1960, pauta a cultura em todos os aspectos. A sociedade patriarcal e machista cultiva a misoginia, a desvalorização, a mercantilização, além da hipersexualização, entre outras opressões sobre as mulheres. Como dizia a filósofa feminista Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se”, ou seja, desde o nascimento, o bebê do sexo feminino é moldado para se encaixar num papel submisso de mulher. Segundo as teses de Beauvoir presentes em seu livro intitulado como O segundo sexo, a imposição da feminilidade, da rivalidade feminina, da romantização do matrimônio e da gestação como complemento do ser mulher são estereótipos criados para limitar a existência da fêmea. Dessa forma, nota-se que de nada adianta cortar os galhos do problema e deixar suas raízes culturais.


Utopia ou busca

Para fazer jus ao processo da utopia de equidade, existem os movimentos e as frentes de mulheres que lutam pela igualdade de gênero. A militante e feminista do Coletivo Cores e Valores Daiene Sacramento nos diz que são muitas e recorrentes as mudanças em sua vida após conhecer o feminismo, especificamente o feminismo negro.


“Descobri o feminismo aos dez anos de idade, não pela ideologia em si, mas por práticas pessoais que já me proporcionavam uma oposição a imposição patriarcal da sociedade. No início me senti reprimida por não seguir o estereótipo de menina, pois gostava de brincar de carrinho e com coisas que a sociedade nos limita. Na época já fazia trabalhos sociais na igreja, o que me proporcionou conhecer muitas pessoas como, por exemplo, um grupo de Rap que me chamou para algumas reuniões. A partir dai comecei a participar da luta social de fato. Conheci o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e consequentemente a ideologia teórica do feminismo. Li Beauvoir, Rosa Luxembrugo, Wendy Goldman, o que esclareceu cada vez mais a importância do feminismo na vida de todas as mulheres. Com o movimento feminista negro ajudei a construir o Coletivo Cores e Valores, o qual tem o objetivo de sensibilizar as mulheres negras a autoafirmação de suas raízes, despertando assim a força que todas elas têm consigo, e que, entretanto, pela socialização feminina passiva, não percebem.”


Foto da Página Coletivo Cores e Valores
A igualdade de gênero, como toda utopia, fundamenta um processo intencional de desconstrução dos estereótipos de gênero social que limitam e subjugam o sexo feminino. "É necessário ter consciência de que toda mudança requer um longo prazo, principalmente mudanças culturais, ou seja, a luta feminista precisa ser construída e pautada diariamente em todos os âmbitos sociais. Importante ressaltar também que o movimento feminista, sendo uma luta pela desconstrução da sociedade patriarcal é pautado por mulheres, dando visibilidade às pautas de seus direitos, e nunca por homens", diz a feminista.