6 de jun. de 2011

Arthur Bispo do Rosário

A personificação da arte
A crescente quantidade de produções acerca da vida de Arthur Bispo do Rosário faz com que a lenda criada em torno do artista se torne cada dia mais densa. 


Por Nayara Arêdes
 
É noite, e Arthur Bispo do Rosário descansa na casa da família Leone. Eis que do céu surgem sete anjos envoltos em luminosa aura azul, vindo ao seu encontro e convidando-o a peregrinar pelas igrejas da cidade do Rio de Janeiro e a apresentar-se como o incumbido de julgar os vivos e os mortos. É assim que se inicia a trajetória de um artista que projetou o Brasil no circuito internacional, marcando presença em bienais como a 11ª de Lyon – que foi anunciada no último dia 30 e se realizará em setembro – e em mostras na Bélgica e na Espanha – a realizarem-se ainda em 2011. E que mostrou que negro, pobre, nordestino, “louco” e indigente também podem fazer arte.
A História
Nas palavras do próprio Bispo do Rosário, segundo a biografia “O Senhor do Labirinto”, escrita pela jornalista carioca Luciana Hidalgo, “um dia simplesmente apareci”. E não estava errado ao afirmá-lo: sua data de nascimento até hoje gera controvérsias, havendo discordâncias entre os registros de 1909 e 1911. O que se sabe é que Bispo nasceu em Japaratuba, Sergipe, filho de Claudino Bispo do Rosário e Blandina Francisca de Jesus. E foi aí onde passou sua infância em contato com os bordados e o colorido das roupas das quadrilhas e festas folclóricas, marcas que se expressam em sua produção.
Em 1925, Bispo se alistou na Escola de Aprendizes de Marinheiros em Sergipe, e no ano seguinte foi transferido para atuar na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro. Durante o período em que esteve na Marinha, aprendeu a lutar boxe, e destacou-se como pugilista. Em 1933, deixou a corporação por motivos disciplinares – teria sido punido diversas vezes por insubordinação –, e passou a fazer “bicos” para se sustentar. Tendo sofrido um acidente de trabalho em 1936, Bispo foi defendido pelo advogado Humberto Leone, que acolheu-o em sua casa em troca de serviços domésticos. E foi em 22 de dezembro de 1938, durante o período em que morava com a família Leone, que a história de Bispo encontrou seu divisor de águas.
O próprio Bispo do Rosário, em um de seus estandartes, e a biografia escrita por Luciana Hidalgo descrevem a cena que passaria a ser o marco da transição entre o ex-marinheiro e pugilista para o artista e o mito. O episódio da anunciação dos anjos, em que delirou durante dois dias pela cidade, subiu ao Mosteiro de São Bento e se autodeclarou Jesus Cristo, levou Bispo a ser internado no Hospital dos Alienados na Praia Vermelha, fichado como “negro e indigente”. Depois de passar por outras instituições, Bispo foi transferido em 1939 para a Colônia Juliano Moreira, cuja finalidade era abrigar negros, pobres e alcoólatras considerados indesejáveis ou anormais pela sociedade.
Arthur Bispo do Rosário foi diagnosticado esquizofrênico-paranóico, e passou 50 anos de sua vida entre períodos de alta e retorno na Colônia Juliano Moreira, em profusa produção. Para Bispo, sua obra foi concebida a mando de uma “voz”, que o determinava a reconstruir um mundo em miniatura para ser apresentado no dia do Juízo Final. Entre estandartes, mantos e coleções, o artista utilizava todo tipo de sucata em suas composições. Dentre elas, a mais famosa é o Manto da Apresentação, com o qual ele deveria se revestir na hora da morte. Bispo mesclou técnicas e materiais para produzir arte com as mais diversas temáticas: motivos religiosos, escrita e sua vida na Marinha são apenas algumas das inspirações do artista.
Bispo do Rosário faleceu em 5 de julho de 1989, no Rio de Janeiro, de infarto do miocárdio e arterioesclerose. E fez cumprir sua profecia: segundo Wilson Lázaro, curador do Museu Bispo do Rosário – que funciona na desativada Colônia Juliano Moreira –, “Ele mesmo dizia que seria um grande artista e as pessoas iriam falar muito dele”. A genialidade de Bispo é comparada a de artistas como Marcel Duchamp, afirmando-o como um expoente da arte contemporânea que produziu mais de mil obras consagradas no mercado da arte. No início, o próprio Bispo fazia-se curador de suas exposições, tendo se inserido no circuito internacional apenas depois de sua morte, em 1995, com a 46ª Bienal de Veneza. A arte de Bispo foi apresentada ao mundo através do crítico de arte Frederico de Morais, que descobriu o artista ao assistir uma matéria sobre maus tratos em hospitais psiquiátricos. E de lá pra cá o fascínio despertado pela obra e pela personalidade do artista cresce cada vez mais.
A Personalidade
Bispo era reconhecido junto aos guardas da Colônia Juliano Moreira como uma espécie de “xerife” do pavilhão, utilizando suas habilidades de ex-boxeador para conter os internos exaltados. Aos poucos, aprendeu a dominar-se, passando a um estado de reclusão em que tinha medo de sua própria força, pedindo aos guardas que o prendessem. Nesta fase, Bispo passou meses isolado e em jejum, sobrevivendo à custa de frutas e água com açúcar. Em 7 de março de 1983, deu entrada no pronto-socorro com quadro de desidratação e estado de inanição, dizendo querer emagrecer para tornar-se santo. E foi durante seu estágio de confinamento que Bispo lançou-se a jornadas de trabalho de 18 horas ininterruptas, tomado pela obsessão criativa.
Como paciente, era asseado, gostava de ler e jogar xadrez. Utilizava o nome de funcionários da Colônia para compor sua produção, ao mesmo tempo em que evitava o convívio com os outros internos durante as refeições e não participava de atividades interativas. Junto à família Leone, Bispo era respeitado e mesmo reconhecido como dotado de poderes curativos. Alguns membros da família recorriam às suas orações para curar problemas de saúde.
Apreciava o modelo da mulher casta e bela, personificada nas misses. A elas, dedicou algumas de suas obras: faixas bordadas com o tecido de lençóis e uniformes que desfiava. E envolveu-se numa relação com uma estagiária de psicologia que viera trabalhar na Colônia, Rosângela. Com ela, Bispo agia de forma dócil, oferecendo algumas peças de arte, contando-lhe passagens de sua vida e de sua condição de enviado divino. Rosângela fora a única terapeuta com quem Bispo deixava-se conversar, e a quem oferecia recomendações sobre seu comportamento como mulher, que deveria ser comedido. Para a estagiária, Bispo criou uma de suas obras mais conhecidas: a Cama de Romeu e Julieta.
Apegado a religião, dizia ter vindo ao mundo pelos braços da Virgem Maria. E apesar de jamais ter tido o intuito de tornar-se artista, sua produção surgiu como a missão com a qual Deus lhe havia encarregado, e a qual dedicou sua vida. Ao produzir, Bispo expressa seu universo interior de forma ordenada, superando sua doença e ajudando a compor um personagem emblemático, que se confunde com a própria noção de arte.

O Mito
O fascínio despertado pela figura de Bispo do Rosário atrai especialistas de áreas diversas a debruçar-se sobre sua história. A singular produção artística de Bispo é apenas um dos aspectos que despertam o interesse dos estudiosos, sendo a personalidade do próprio artesão a fonte de pesquisas que perpassam desde o campo da arte até a psicologia. A esse respeito, o jornalista, doutor em artes, crítico e curador Jorge Anthonio e Silva, autor de “Arthur Bispo do Rosário: Arte e Loucura” esclarece: “Arthur Bispo do Rosário provoca enorme afeição e rejeição por que sua obra está, ainda, restrita ao âmbito da loucura. Este é um tema que nos causa curiosidade por que tememos a dissociação mental, ao mesmo tempo em que a admiramos. Para os verdadeiros críticos, Bispo representa uma renovação na história e no pensamento sobre a arte ocidental. Ele transgride todos os paradigmas canônicos e nos brinda com a possibilidade concreta de um novo conhecimento produzido por um sujeito que não se fez fundamental pela razão, mas pela disconexão, pela criação paradoxal”.
Márcio Sellingman, doutor em Teoria Literária e autor de “Arthur Bispo do Rosário: a arte de enlouquecer os signos”, aponta as razões para o impacto causado pelo artista: “Arthur Bispo do Rosário possui uma obra que nos fascina há décadas. Acredito que esse fascínio, inclusive, não para de crescer. Vejo vários motivos para isto. Em primeiro lugar, Bispo realizou um tipo de arte que ficou na moda nas últimas décadas: ele utiliza séries, faz coleções, serve-se do lixo, mescla mídias e procedimentos (escritura, imagem, acumulação, instalação, costura), estabelece comunicação entre a religião e as artes de um modo no mínimo original. O efeito de sua obra é impactante e original. Se não bastasse isto, ele era negro e vivia em um asilo para loucos de um país do Terceiro Mundo. Esta origem triplamente marginal também é importante hoje, na era da globalização, do discurso pós-colonial e do politicamente correto. Se inicialmente sua obra era recebida como antecessora de muitos artistas contemporâneos, colocando-se Bispo como uma espécie de ’gênio’, agora ela passa a ser vista como parte da história da arte contemporânea”.
Em seu artigo “As obras de Arthur Bispo do Rosário: Ensaio Fenomenológico”, a doutora em Psicologia Clínica Latife Yazigi conta a história do artista e analisa sua obra sob o ponto de vista da psicologia. Num trecho do texto, Yazigi descreve: “Ao estilo individualista, impessoal e reservado de Arthur Bispo, manifesto na relação com o mundo exterior, se contrapõe a efervescência do mundo interno e a generosidade expressa na exuberância de sua produção. Sua criatividade, instrumento de sobrevivência psíquica, consegue sobrepujar o isolamento, a reclusão, e ser transposta para o exterior e explicitada na ação. A capacidade criadora de Arthur Bispo aflorou no período de sua hospitalização. Graças a ela, pôde suportar os 50 anos de encerramento e enfrentar as agruras de um cotidiano áspero e mesmo insalubre. Graças a ela, pôde conviver não só com suas idiossincrasias, mas também com aquelas dos demais internos da Colônia. Graças a ela, Arthur Bispo pôde transformar uma existência que poderia ter sido desperdiçada em uma vida rica e produtiva.”
Além de motivar opiniões e pesquisas várias, o universo de Arthur Bispo do Rosário atraiu também a grande mídia. Na década de 1980, o escritor, jornalista e político Fernando Gabeira lançou um documentário a respeito da vida do artista como parte da série “Video-Cartas”. E no ano passado, o filme biográfico “O Senhor do Labirinto” foi lançado e recebeu o prêmio de melhor longa metragem pelo voto popular no Festival do Rio. Dirigido por Geraldo Motta, a trama apresenta Flávio Bauraqui no papel de Bispo do Rosário e conta com a atriz Maria Flor em seu elenco. E esses são apenas dois exemplos dentre tantas obras cinematográficas que se basearam na vida do artista.
Muito além da enfermidade, a loucura de Bispo vem da sua ousadia de romper convenções e da coragem de se lançar de maneira visceral sobre aquilo que estabelece como meta a perseguir. Se assim é, quem pode negar a existência – ou mesmo a ambição – de um certo espírito de loucura em si mesmo?

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